Paciente: Sexo feminino. Vinte anos.
Estresse pós-traumático. Alucinações visuais.
Avistamentos de um vulto, o "homem grande".
Cartas de tarô, de origem desconhecida.
Muda.
Mora só.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Entrevista: Chico Pereira, compositor

Chico Pereira (à esquerda) gravando a música do filme junto com o engenheiro de som Roberto Coutinho (direita)



Versatilidade é uma das marcas mais visíveis (audíveis?) de Chico Pereira como músico. Ele compõe trilhas sonoras com a mesma facilidade com que faz solos de guitarra ou comanda uma mesa de gravação. 

Compositor, músico e produtor musical, em Kassandra ele teve um árduo trabalho, já que a sica começou a ser discutida antes mesmo da primeira versão do roteiro estar pronta. Confira como foi feita a música do curta:

Uma das ideias mais primordiais de Kassandra foi que a trilha sonora fosse diferente, não caindo nos clichês do cinema de suspense e de horror. Como se faz uma trilha assim, sem se apegar aos cânones da música para filmes? 

Chico: Difícil. É muito tentador, não? Tem tanta música boa e bem feita para filmes deste gênero. Me peguei inúmeras vezes, enquanto compunha para Kassandra, homenageando sem querer meus compositores favoritos. É complicado compor para suspense e horror e não "roubar" alguma coisa de Bernard Herrmann, por exemplo. Caras como ele compuseram cânones por algum motivo. E este motivo é que estes compositores são, muitas vezes, a bússola do diretor e do espectador. Este certo poder do compositor de música para filmes é fascinante, ao mesmo tempo em que pode ser uma imensa e assustadora responsabilidade. 

Em certas fases do meu trabalho em Kassandra, precisei me afastar do trabalho por um ou dois dias e "limpar" minha percepção auditiva. Acho que isto me ajudou a chegar no que, acredito, não seja um resultado clichê. Não se trata de escutar e estudar os cânones com atenção e fazer tudo ao contrário. Se trata, sim, de tentar colocar alguns tipos de ideia em diferentes contextos: um timbre diferente, uma linha melodica inesperada, uma pausa onde se esperaria uma percussão.


Por sinal, o filme tem vários planos concebidos desde o início para que a música fosse o destaque. Como você vê a função da música nestes momentos? Como é a relação entre diretor / compositor para chegar a um bom resultado neste tipo de trabalho?

Chico: A música em um filme, mesmo quando está em destaque, está trabalhando para o filme. Isso é a primeira coisa que me vem na cabeça, mesmo que o diretor oriente que o seu trabalho seja o protagonista naquele momento. No caso de Kassandra, o que me fascinou foi a oportunidade de a música ser, literalmente, a voz de uma personagem que não consegue falar. Por isso, tive um cuidado extra ao compor temas e melodias, especialmente para a personagem principal. Como representar uma personagem tão cheia de camadas, tão dúbia? Me ative muito a este tipo de questão.

O papel do diretor em relação ao compositor em um trabalho assim é de um parceria pouco comum. O compositor não conseguiria fazer - falo por mim, principalmente - um trabalho tão focado se o diretor não estivesse quase compondo junto a música do filme. É um trabalho exaustivo, exige muito do psicológico, muito mais do que das habilidades musicais propriamente ditas. O apoio e a orientação do Ulisses foram essenciais neste caso.


Antes mesmo do curta começar a ser filmado, você já estava envolvido com a produção, fazendo uma seleção de referências musicais para serem ouvidos por elenco e equipe. Além disso, você inclusive estava no set, colocando música enquanto as cenas eram filmadas. Qual a importância do seu envolvimento desde esta etapa inicial?

Chico: Sinceramente, não conheço ainda outro método de trabalho. Em todos os filmes que trabalhei, estive no set, em tempo integral na maioria das vezes. Em Kassandra, eu precisava de algo mais do que ler o roteiro e assistir ao corte final do filme. Como já disse, eram camadas demais para representar com música. Difícil captar isso sem estar lá. Agradeço ao Ulisses pela sugestão e pelo privilégio de ver a atuação assombrosa da Renata in loco.

Ao mesmo tempo, gostaria muito de ter a experiência de trabalhar em um filme sem estar no set, trabalhar com um olhar mais de fora - coisa que deve ser concretizada em breve com um projeto novo que está por vir, Luz Natural.



Mixando os 33 canais de música gravados para Kassandra


Fale um pouco do processo de composição e gravação. Como você criou a música e que programas e instrumentos foram usados nas gravações? Junto com o engenheiro de som Roberto Coutinho, você elaborou uma música experimental durante as cenas de pesadelo do filme. Vocês usaram sons de piano tocados de trás para diante, correto?


Chico: Compus em casa, tudo em MIDI. Tocava as linhas de todos os instrumentos em um controlador - para quem nao conhece, é basicamente um teclado que dispara sons de bibliotecas de timbres que estao no computador. Alguns destes timbres que usei nas minhas demos foram usados - sons sintetizados disfarçados de timbres mais orgânicos, o que era uma das minhas propostas conceituais da música, esta mistura de real e irreal.
 
Porém a maioria dos meus sons originais foram substituídos no Ampli Studio, em um trabalho de pesquisa que fiz com o Roberto Coutinho. Só existem dois elementos totalmente orgânicos na música: a voz da cantora Mariele Giovanaz e o violino de Isadora Raymundo (ambas com performances perfeitas para o que precisávamos). Mas, seguindo o conceito proposto, estes dois elementos foram transformados e processados, para que transparecessem um aspecto mais etéreo e melancólico.
 
A questão dos sons de piano é interessante. Já havíamos gravado algo parecido em outro filme, Ninho dos Pequenos, mas em contexto absolutamente diverso. Toquei diretamente nas cordas do piano de parede que fica no Ampli Studio, usando meus dedos, palheta, escova de limpeza, arco de violino e chave de fenda para tirar diferentes sons e efeitos. Quando cheguei na sala técnica, depois de gravar estes sons, o Roberto havia invertido eles e isto casou muito bem com o clima surrealista das cenas de pesadelo. Ficamos realmente assustados com o resultado alcançado.


O primeiro curta no qual você e Roberto estiveram envolvidos na música, Onírico, é de 2003, e desde então vocês trabalharam juntos em várias ocasiões, inclusive em todos os curtas dirigidos por Ulisses da Motta Costa (O Gritador, Ninho dos Pequenos e o vídeo pedagógico Cecília e a Guerra dos Farrapos). Como é esta parceria?


Chico: O Roberto e o irmão dele, Daniel, são meus amigos mais antigos. Nos conhecemos há mais de vinte anos. Tocamos em bandas juntos, gravamos juntos e ainda convivemos bastante nas horas de folga. Então, nos conhecemos muito bem, o que facilita demais o nosso trabalho. Tenho orgulho de dizer que nunca precisamos brigar para fazer alguns belos trabalhos, não só nos filmes, mas também na publicidade e em outros trabalhos musicais. Além disso, graças a este cara consigo hoje gravar minhas músicas em casa, por exemplo. A maioria do que sei da parte mais técnica na área do som e de gravações, aprendi observando ele trabalhar. E o Roberto tem a calma e a concentraçao pra captar muitas coisas que quero fazer e às vezes nao sei como.

Daí, se juntarmos o Ulisses nessa história, "os 3 patetas" complementam seus talentos e conseguimos evoluir muito juntos. Espero que a gente possa seguir sempre nestas parcerias.

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